sábado, 20 de outubro de 2012

A CONFISSÃO DA LEOA



"Todas nós, mulheres, há muito fomos enterradas. 
Seu pai me enterrou; sua avó, 
sua bisavó, todas fomos enterradas vivas."
Mia Couto – A Confissão da Leoa


Um mundo dividido e hierarquizado em gênero. Quem nasce mulher, nasce menos. Padece de um aborto cultural antes mesmo de desentranhar-se da mãe. Essa é a África do livro “A Confissão da Leoa”, do escritor moçambicano Mia Couto, publicado, no Brasil, pela Companhia das Letras.

Meditar acerca da posição social da mulher “num outro mundo chamado Moçambique” é tarefa que, no primeiro momento, nos dá a falsa e confortável ideia de que as problemáticas das narrativas do romance, ficcionais e de uma cultura que se nos aparenta fabulosa, não nos dizem respeito. Contudo, em todos os lugares do mundo existem mulheres a observarem-se “enterradas vivas”, ante a violência física e moral de que são vítimas.

A história se passa em Kulumani, uma aldeia situada ao Norte de Moçambique, África, em que, afirma o autor “tudo está treinado para morder. As aves abocanham os céus, os ramos rasgam as nuvens, a chuva morde a terra, os mortos usam os dentes para se vingarem do destino.”

Nessa terra encontraremos leões a devorarem pessoas. Seriam leões nascidos de leoas ou leões fabricados por feitiçaria? - Indaga-se. Um caçador é chamado. Sua chegada faz um coração estremecer. É o coração de Mariamar, a que tivera, há tempos, conquistado.

Rituais permeiam o livro. Mulheres são submetidas a um infinito de violências morais de submissão e silêncios, somados à ideia  de que jamais pertencerão a si mesmas, sendo meras figurantes e jamais protagonistas de seu destino. Agressões físicas como mutilações de órgãos sexuais e estupro são recorrentes em Kulumani.

O que me apavora é que Kulumani se transporta no espaço e pousa impunimente nos relatórios e estatísticas criminais brasileiros. Também aqui, nascer mulher é quase uma condenação à violência doméstica, onde o soco ou o grito ou o xingamento se alternam com a carícia ou até mesmo com o sexo forçado. Onde a mulher, enclausurada em seu ego massacrado, se sente de algum modo culpada e merecedora  da  agressão recebida.

Não há que se confundir a luta pela igualdade dos sexos com bandeira sexista. Qualquer violência praticada contra um ser humano está acima do sexismo: merece um discurso humanitário, um apelo à justiça, em nome da dignidade da espécie. É por isso que as leoas rugem. 

Essas mulheres, leoas moçambicanas, brasileiras ou de qualquer outra nacionalidade, guardam segredos inconfessáveis. Por vez, por descuido ou por um ato de autorrespeito, confessam, professam sua força. Eis “A Confissão da Leoa”.


NARA RÚBIA RIBEIRO